Abstract
Nos últimos anos, o grupo tornou-se mais segmentado, jovem, feminino, diplomado, pós-graduado, precário e autônomo O artigo está organizado em quatro itens, além desta introdução. O primeiro item apresenta as transformações que estão em curso no jornalismo e destaca as principais diferenças entre homens e mulheres na profissão no que se refere à proporção de diplomados, às áreas de atuação e às desigualdades persistentes. O segundo item introduz algumas discussões teórico-metodológicas da pesquisa, buscando ir além das diferenças de gênero, examinando também as diferenças dentro do grupo das mulheres. O terceiro item analisa alguns discursos de mulheres jornalistas de diferentes gerações, que atuam em diversos tipos As conquistas femininas na profissão podem ser observadas por meio dos dados acerca da participação das mulheres em todas as atividades do jornalismo, bem como sua presença majoritária entre os diplomados. A proporção de diplomados varia entre os gêneros e conforme a função e os meios de comunicação em que os profissionais estão inseridos. Há diferenças dentro de cada segmento nessa profissão. Dentro do grupo das mulheres jornalistas, existem diferenças quanto à remuneração, dependendo das funções que exercem, e quanto à proporção de mulheres com diploma, por função. Por exemplo, de acordo com a RAIS, entre as editoras que trabalham com carteira de trabalho assinada em São Paulo, mais de 86% têm diploma de graduação, enquanto, para as fotógrafas profissionais, esse índice não chega a 25% 2 Nessa categoria, as mulheres diplomadas correspondem a mais de 68% do total das jornalistas brasileiras, enquanto essa proporção no caso dos homens é de 58,17% (BRASIL, 2013). As diferenças salariais entre os gêneros variam conforme o setor de atuação dos profissionais. Em todas as funções da categoria "Profissionais do Jornalismo", que é justamente onde a grande maioria das mulheres (78,2%) se concentra, as mulheres ganham, em média, menos do que os homens. Por outro lado, podemos destacar que existe uma variedade de situações nessa profissão. As mulheres também se inserem em posições hierárquicas que oferecem maior remuneração. De acordo com a RAIS Um dos processos de transformação em curso na profissão de jornalista consiste na precarização da profissão. Atualmente, uma grande parcela dos jornalistas está envolvida em relações precárias de trabalho dentro da profissão, com garantias trabalhistas reduzidas e recebendo baixos salários. Os jornalistas freelancers, compostos em sua grande maioria por mulheres, são marcados pela instabilidade, o que corresponde a uma expressão do processo de banalização da profissão. Segundo pesquisa da Federação Nacional dos Jornalistas -Fenajde 2012, 3 as condições precárias de trabalho dentro da profissão atingem mais as mulheres. O estudo revela que as mulheres jornalistas ganham menos que os homens, são maioria em todas as faixas até cinco salários mínimos e minoria em todas as faixas superiores a cinco salá-rios mínimos. Quanto às relações precárias de trabalho, as mulheres correspondem a 68,8% do total de jornalistas que atuam em empresas "fora da mídia" (setor extra-redação), majoritariamente em assessorias de imprensa ou de comunicação. Em resumo, as mulheres são maioria entre os jornalistas (64%), têm presença majoritária (quase 70%) entre os jornalistas que atuam fora da mídia e, em função das condições de trabalho específicas desse segmento, estão mais sujeitas (mais de 60% dos jornalistas que trabalham "fora da mídia") às relações de trabalho precárias, sem carteira de trabalho assinada, atuando como freelancers (sem vínculo empregatício), ou como pessoa jurídica (PJ) ou com contrato com prestação de serviço (BERGAMO; LIMA; MICK, 2012 Paulo recebem até R$ 2 mil e 81,1% ganham até R$ 4 mil Da caTegoria uniTária "mulher" à DiVersiDaDe Do grupo Das mulheres JornalisTas A questão da diferença passou a ser relevante nos estudos culturais, pós--coloniais e feministas por fazer referência não apenas à diferença entre os gêneros, mas também à diferença entre as mulheres, evidenciando a diversidade de experiências e de reivindicações das diferentes mulheres. A abordagem proposta neste estudo é resultado do interesse de não limitar o enfoque à simples afirmação de que a "condição feminina" representa uma desvantagem universal, que define a "mulher" como grupo unitário e entende as relações de poder entre homens e mulheres como determinante quase exclusivo da subordinação das mulheres. O gênero é pensado neste trabalho como central para entender as hierarquias dessa profissão. No entanto, outras questões entram na análise, como a geração da profissional, seu estado civil e o tempo dividido entre maternidade e trabalho. Os estudos que articulam o gênero, diferença e profissões passam, então, a considerar as teorizações sobre as diferenças entre os gêneros, as diferenças entre as mulheres e as diferentes masculinidades, com o argumento de que as meras oposições binárias e as polarizações não são confiáveis para explicar a complexidade das relações sociais. Para Utilizamos a diferença como categoria analítica e fundamentamos nossa análise nos pressupostos teóricos de Avtar Brah. A análise das entrevistas teve como principal referencial o esquema proposto pela autora, que apresenta quatro formas de conceituar a "diferença": diferença como experiência, diferença como relação social, diferença como subjetividade e diferença como identidade. Quanto à ideia de diferença como experiência, a autora afirma que a experiência é entendida como "construção cultural", como "uma prática de atribuir sentido, tanto simbólica como narrativamente" (BRAH, 2006, p. 360). No que se refere ao discurso acerca do preconceito, na análise das entrevistas, identificamos a diferença como experiência quando o discurso expressa uma situação de discriminação vivenciada pela entrevistada, ou seja, quando o relato de discriminação se der a partir do ponto de vista de sua experiência. A diferença como relação social é mobilizada por um grupo a fim de relatar suas experiências históricas coletivas nos discursos compartilhados. Identificamos a diferença como relação social nos relatos em que o evento se referir à vivência de outra pessoa, como por exemplo, a entrevistada relatar que tem conhecimento de que alguma colega foi vítima de preconceito no trabalho ou que ela testemunhou a situação de discriminação. As percepções da diferença não se limitam aos relatos de discriminação, já que a diferença não se constitui necessariamente como um "marcador de hierarquia e opressão", podendo significar inclusão e diversidade. Assim, o terceiro tipo de diferença, que é a diferença como subjetividade, remete à noção de interioridade, em que se pensam os processos em que a subjetividade é formada como sociais e subjetivos, uma vez que as posições sustentadas pelo indivíduo são socialmente produzidas. Por fim, a diferença como identidade faz referência ao processo de construção em que a subjetividade, mesmo sendo múltipla e contraditória, é significada como tendo coerência, continuidade e um núcleo em permanente mudança, que constitui o "eu", já que a identidade é entendida como "multiplicidade relacional em constante mudança" (BRAH, 2006, p. 371). Em resumo, nesta pesquisa, a diferença é definida a partir do lugar que se constitui como referência para a profissional produzir suas "posições de sujeito", construir sua subjetividade, interpretar suas experiências singulares e compreender sua posição na sociedade e na carreira profissional. Nosso pressuposto é de que o lugar de onde a jornalista fala, isto é, sua posição dentro das relações de poder que operam no interior do contexto específico em que ela se insere -suas relações sociais e profissionais -, tem implicações sobre sua percepção acerca do gênero, da carreira e de como ela se vê na carreira. O campo empírico da pesquisa é constituído de entrevistas em profundidade e semiestruturadas com jornalistas que residem e exercem suas atividades profissionais na cidade de São Paulo. As mulheres entrevistadas representam uma diversidade de gerações, experiências profissionais, veículos de comunicação, setores de atividade e tempo de carreira. As entrevistas tinham como propósito ouvir as jornalistas sobre suas carreiras, aspirações profissionais, frustrações, sacrifícios pessoais, negociações nas rotinas diárias de trabalho, a respeito de se e como o gênero influencia o tratamento e as oportunidades oferecidas às profissionais, entre outros temas. Na seleção da amostra, buscamos considerar os seguintes parâ-metros que condicionam diferentes percepções sobre a carreira: 1) diferenças entre gerações: contemplando profissionais em vá-rios níveis da carreira, ou seja, jovens (com até nove anos de carreira), de 10 a 19 anos de carreira e com 20 anos ou mais de carreira; 2) a diversidade de mulheres: entrevistando mulheres com filhos, sem filhos, casadas, solteiras e divorciadas, com o propósito de observar como é ter filhos e estar casada na questão do tempo comprometido com o trabalho e nas possibilidades de obtenção de sucesso profissional; 3) diferentes vínculos de trabalho e áreas de atuação, que condicionam "localizações" distintas na carreira, com entrevistas realizadas com freelancers, profissionais que atuam no setor formal, que exercem suas atividades em empresas jornalísticas e "fora da mídia", nas assessorias de imprensa e universidades. Analisando essa profissão e suas intersecções com o gênero, agrupamos os distintos discursos da diferença e demarcamos alguns contrastes que produzem diferença na carreira. As entrevistadas foram asseguradas acerca do anonimato de suas informações e seus nomes foram substituídos por nomes fictícios. As profissionais jovens receberam nomes que começam com a letra J; os nomes das profissionais que estão no ponto intermediário da carreira começam com a letra I; e às profissionais mais experientes na carreira foram atribuídos nomes que começam com a letra E. Discursos sobre a DiFerença na carreiraTraJeTórias e percepções Das JornalisTas Apresentaremos a seguir as percepções das entrevistadas, reunidas em três grupos geracionais, acerca de sua carreira e das diferenças de gêne-ro na carreira. Isabel tem 35 anos, é casada e tem um filho de três anos. É a única jornalista entrevistada que tem filho pequeno. Depois que a profissional teve o filho, "conseguiu aguentar" por dois anos e meio no emprego, onde era editora de mídia eletrônica da área de estilo e "teve que virar freelancer": A questão da dificuldade de conciliação entre maternidade e jornalismo foi determinante para a mudança em sua trajetória. Ainda que a profissional tenha se firmado na carreira, com uma trajetória impecá-vel, chegou um ponto em que ela precisou sair das redações e teve de "começar sua vida como frila". Trabalhar em um "moedor de carne", com um ritmo muito intenso, foi possível enquanto estava solteira e sem filhos. Sua expectativa em relação à profissão era de que, em face da considerável experiência, teria "crédito" suficiente para não ter de se "prestar" ao trabalho de freelancer, que ela considerava ser feito por "amadores" e não por profissionais do seu nível. Isabel é um tipo de "frila compulsório" É possível identificar um diferencial de poder que determina as hierarquias da profissão. A definição das pautas das reportagens é Entre as entrevistadas que trabalham na mídia impressa (setor de jornais e revistas), apenas uma jornalista se especializou numa área das hard news. Ingrid tem 33 anos, é solteira e não tem filhos. Tem 13 anos de carreira e se especializou na área de ciência. Atualmente, é repórter freelancer de um grande jornal de São Paulo e professora de pós--graduação de um curso de jornalismo. A variedade do campo jornalístico é o que caracteriza os profissionais freelancers. Os trabalhos de freelancers não estão somente associados à condição precária de relações de trabalho, significando menos direitos trabalhistas, trabalhos em tempo parcial, instabilidade e salá-rios mais baixos. Ser frila pode ser uma opção do profissional. De acordo com survey sobre os freelancers de São Paulo (GROHMANN, 2012), 25,6% pretendem continuar trabalhando mais do que seis anos nessa condição de trabalho, e consideram-na como um projeto de vida. No caso de Ingrid, que tem outra atividade profissional, como professora universitária de jornalismo, o que motivou sua decisão foi a possibilidade de administrar seu tempo, em uma carreira independente: A noção de precarização do trabalho pode ser reavaliada nessa profissão, já que o jornalismo se refere, em geral, a uma atividade atrativa para pessoas mais flexíveis. Os valores da autonomia e liberdade são muito apreciados entre os jornalistas e, talvez por isso, os profissionais não sejam guiados pela determinação geral dos tipos de empregos estáveis. Um novo tipo de jornalista, jovem, está sendo formado nesse contexto e passa a usar as redes sociais como ferramenta de trabalho. Eles são absorvidos pelas empresas que também estão alterando a forma de produzir notícia. As jornalistas entrevistadas mais jovens fazem parte desse grupo. A questão geracional, nesse caso, é muito importante, já que, quando essas jornalistas entraram na profissão, as mudanças no mundo do trabalho jornalístico já estavam em curso. Elas não sentiram as mudanças porque não vivenciaram o jornalismo de antes. São bastante otimistas em relação à profissão. Entre as mais jovens, destacam--se as referências à paixão pela profissão, dizendo que é preciso estar apaixonada pelo que faz, ao "seguir um sonho", ao ir "atrás de outras oportunidades" e ao "trabalhar por conta própria". Jacqueline tem 24 anos, é casada e não tem filhos. Entrou para a carreira como assessora de imprensa freelancer e se tornou uma profissional especializada em redes sociais. O idealismo e o entusiasmo podem ser observados no depoimento da jornalista, que tem quatro anos de carreira: As jornalistas mais jovens trazem uma linguagem mais técnica, empresarial e objetiva. É o jornalismo empresarial em sua expressão máxima. Trata-se de um tipo de jornalismo que, a partir da década de 1950, começou a substituir o chamado jornalismo político-literário, reconhecido pelas opiniões, debates, comentários críticos e politização dos jornalistas. Júlia tem 26 anos, é solteira e não tem filhos. Tem três anos de carreira. Atualmente é assessora de imprensa freelancer. Além disso, resolveu trabalhar por conta própria e criou um site de cultura, em sociedade com uma colega, também jornalista, em busca de maior liberdade e independência. O discurso do "jornalismo apaixonante" também aparece aqui: A linguagem padronizada que remete à objetividade, neutralidade e imparcialidade está presente nos discursos das profissionais mais jovens, que chegaram para trabalhar nas redações recém-formadas ou na condição de estagiárias. A jornalista mais antiga na profissão, no entanto, ainda mantém um discurso que lembra o período anterior ao processo de profissionalização, em que o jornalismo não obedecia tanto à lógica de mercado, era mais crítico, opinativo e político. Elisa tem 66 anos, é divorciada e tem um filho de 41 anos. Em seus 49 anos de carreira, foi diretora de um jornal de televisão, roteirista, repórter de jornal e também criadora e diretora de um programa de televisão feminino. Diz que acabou sendo "formada na redação", sem precisar de diploma. A jornalista relata as dificuldades da profissão, comparando as condições enfrentadas à situação atual: Muito mais do que diferenças quanto aos tipos de vínculo de trabalho ou segmento da profissão em que as jornalistas exercem suas atividades, percebemos que as maiores diferenças entre as profissionais quanto a suas percepções sobre suas experiências profissionais se devem às gerações. Enquanto as mais jovens se mostram entusiasmadas por falar de suas experiências na carreira, com um idealismo e fascínio pela profissão, próprios da geração de recém-formados, apropriando-se da linguagem do mercado, ensinada nos cursos universitários, na expressão mais declarada de um jornalismo empresarial e voltado para a lógica de mercado, as gerações intermediárias revelam-se mais críticas. Nesse grupo, as percepções das mulheres acerca de suas trajetórias profissionais diferenciam-se principalmente da profissional casada e com um filho, que "virou frila" contra sua vontade, porque não "aguentou ficar no moedor de carne", que é adequado apenas para os homens e para as mulheres solteiras e sem filhos. A geração mais antiga é mais politizada e seu estilo de jornalismo é muito similar àquele do jornalista "formador de opinião". Nos discursos das profissionais, podemos identificar as representações sobre o significado da profissão de jornalista. A profissão mudou Nessas falas, o profissional do jornalismo é descrito como "alguém do bem", que tem talentos que não podem ser aprendidos, que se compromete com a verdade e que pode "salvar" as pessoas a partir da informação. As mais jovens têm percepções idealizadas, muito diferentes da rotina de trabalho da profissão. A percepção de aceitação da realidade pela geração mais experiente pode influenciar a construção da imagem dos profissionais mais jovens. No início, as jornalistas mais jovens aderem a valores dominantes da profissão para facilitar e fazer deslanchar sua carreira, mas, com a experiência, elas começam a perceber as realidades da profissão. Na visão de Elisa, que tem 49 anos de carreira, sua profissão é encantadora: é a "profissão mais bonita do mundo". Objetivamente, a jornalista não está empregada e percebe a profissão a partir de um Analisando as representações sociais dos jornalistas, percebemos que a segmentação da profissão em grupos, que representa a produção de diferença na carreira, é "apagada" por uma ideia neutra presente no profissionalismo. Em virtude disso, os valores do jornalismo continuam sendo representados por um ideal romântico, a despeito das realidades da profissão. A figura do jornalista vista de uma forma abstrata, neutra, universal remete às categorias masculinas. O jornalista universal é geralmente pensado como um homem. O "bom jornalista" é, nessa perspectiva, um homem. E isso traz prejuízos concretos para as carreiras das mulheres. Como explica North (2009, p. 8, tradução nossa), "esse entendimento do homem jornalista como a norma coloca as mulheres em posições periféricas e contribui para a segregação de gênero nas organizações". 5 A representação universal presente no discurso dominante e masculinista da profissão também impede que as profissionais percebam as realidades do jornalismo. À medida que era solicitada a descrição das características da profissão e do profissional de jornalismo, as entrevistadas referiam-se a descrições universais da profissão que, em grande medida, não levam em conta os "invisíveis do jornalismo", os freelancers, nem tampouco as mulheres, passando a impressão de que não estavam falando delas mesmas como jornalistas, mas se referindo a um jornalista universal. No depoimento de Jacqueline, que ingressou recentemente na profissão, o bom jornalista é um "cara que entende de pessoas e sabe lidar com elas": As mais jovens ainda estão aprendendo os papéis específicos de seu trabalho e, por isso, sua avaliação a respeito de sua profissão pode ser idealizada, ou pela imagem construída pelos veículos de comunicação ou pelo enfoque que foi dado em seu curso universitário. Ao falar sobre sua carreira, a jornalista recém-formada pensa, na verdade, em um jornalista veterano, mais experiente, com a carreira consolidada. Talvez por isso considere que o jornalista é um cara experiente, independente e ético. Vejamos agora o depoimento da repórter Ingrid, que é especialista em ciência. Ao interagir cotidianamente e vivenciar a prática do jornalismo, Ingrid reconstruiu sua realidade, conferindo novos significados à representação do profissional e reinterpretando essas maneiras tipificadas de agir no interior da profissão. Em sua percepção, ela própria corresponde a uma ilustração da imagem do "bom jornalista". Em vez de recorrer ao "quadro pronto" da representação da profissão, a jornalista usa referências de sua realidade, inclusive sobre o tema da ciência, que é precisamente a área em que se especializou: A intenção de marcar fortemente as diferenças entre as fronteiras dos profissionais e dos amadores aparece muito mais nos discursos das mulheres da geração intermediária. Entre as mulheres jovens, as respostas sobre os "outros" se limitavam à importância do diploma de jornalismo para o exercício profissional. Isto é, os "outros", na percepção das mulheres recém-formadas, não tinham diploma de graduação em jornalismo. Questionadas sobre o que as torna profissionais, diferenciando-as dos "amadores", as jornalistas mais jovens responderam: Por estarem no início de sua carreira, as jornalistas recém-formadas ainda não vivenciaram as tensões e contradições entre sua trajetória profissional e a expectativa contida nas representações sociais acerca da profissão que criam uma história coletiva desse grupo. A geração intermediária experimenta diferentemente as mudanças na profissão de jornalismo e se posiciona mais criticamente, tentando delimitar seu território de atuação. Elas sabem muito bem com quem disputam o mercado de trabalho. As jornalistas mais jovens recorrem a imagens gerais sobre a profissão, não identificam claramente um "outro" com o qual precisavam competir. A jornalista mais antiga na carreira, que não experimenta no presente momento as tensões da profissão, também não mostra uma grande preocupação em demarcar esses limites. Lombardi (2006, p. 14) fez uma pesquisa sobre as engenheiras e constatou que as mulheres que exercem cargos de chefia, como gerentes e diretoras, são duplamente desafiadas: têm de provar que são capazes de comandar equipes tão bem ou até melhor que os colegas homens e, além disso, têm de achar um "jeito próprio de gerenciar, que difira do proposto no modelo estabelecido". Nesse caso, as mulheres podem valorizar a própria feminilidade como marca da diferença. O discurso do profissionalismo é empregado por alguns grupos que buscam fazer uma representação do todo, forjando a construção de identidades profissionais e dos sentimentos de pertencimento ao grupo. Assim, o sentimento de pertencimento à profissão, materializado na neutralidade do profissionalismo, pode apagar as especificidades e esconder a heterogeneidade do grupo. O mundo das profissões orienta-se, em geral, por práticas e valores masculinos, fundamentados na neutralidade e racionalidade. Assim, a "eficácia simbólica" da profissão se expressa em razão de a sociedade confiar na expertise, reconhecendo sua autoridade. A ideologia por trás da expertise é de que o saber é neutro. E o saber se afirma neutro à sociedade justamente porque se aplica sem distorções, utilizando exclusivamente esse conhecimento De acordo com Bonelli (2010), como o gênero permanece sendo uma eterna desvantagem, as mulheres de nível superior empenham--se em realizar um "apagamento de gênero", contestando, por meio de sua negação, a "reprodução de dominação e sujeição" do gênero. Nos termos da autora: reconhecimento e valorização social, reforçando a identificação profissional perante o pertencimento a outra comunidade, como a de gênero. (BonElli, 2010, p. 278) A forma como a mulher que realiza o "apagamento de gênero" experimenta o gênero é mantendo-o na intimidade, na subjetividade, não na prática da profissão. Os valores profissionais são exaltados por resultarem em maior reconhecimento da profissional, o que conduz as mulheres a reforçarem sua identidade profissional em detrimento da de gênero, que estaria ligada a estereótipos negativos. Pensando sobre sua trajetória profissional de quase 50 anos dentro do jornalismo, Elisa nega a diferença como relação social. Em sua percepção, "trabalhar dobrado" contribuiu para apagar as marcas de gê-nero e permitiu que seu valor como profissional pudesse se destacar, já que tinha "fama de trabalhar muito": A identificação à diferença de gênero como relação social é suprimida em favor da identificação ao profissionalismo. "Trabalhando dobrado", Elisa considerava que alcançaria o mesmo valor de um homem e, na sua concepção, como resultado, esse esforço fez com que nunca experimentasse nenhuma situação de discriminação de gênero. A jornalista contesta a diferença querendo dizer que não reivindica um tratamento diferenciado por ser mulher. Para isso, faz referência a elementos que remetem à neutralidade do profissionalismo. É uma estratégia usada pelas mulheres para contestarem a naturalização das diferenças de gênero, percebendo a diferença com igualdade. Como afirma Bonelli (2010, p. 279) sobre as juízas: as mulheres "que contestam a diferença e negociam os sentidos da igualdade na carreira embaralham as distinções consolidadas e desnorteiam classificações fixas, pensando as fronteiras de uma nova forma". Há outras formas de se perceber a diferença de gênero na carreira. Quanto ao discurso sobre o preconceito de gênero, identificamos a diferença como experiência quando a narrativa revela uma situação de discriminação vivenciada pela entrevistada. Ingrid percebe a diferença como experiência e faz um relato sobre as situações de discriminação que experimentou: A jornalista chama a atenção para a naturalização das diferenças de gênero empreendida pelos homens com quem estabelece contato em sua profissão. Ela identifica o preconceito que sofreu e os estereótipos de gênero a partir dos quais é vista na profissão. Como estratégia para experimentar o gênero de modo que os efeitos em sua carreira sejam mínimos, a jornalista faz uso da neutralidade do profissionalismo: Minha estratégia sempre foi seguir firme, não ceder, agir de maneira muito séria e comprometida. sempre me preocupei com pontualidade, com postura, com tom de voz, com A partir de suas posições de sujeito na profissão -jornalista com mais de 10 anos de experiência na carreira, da geração intermediária, especialista em ciência, que é reconhecida como uma área tradicionalmente masculina, doutoranda, professora de pós-graduação, repórter freelancer, solteira, sem filhos -, Ingrid experimentou a diferença na profissão, o que transformou sua percepção da diferença, ressignificando-a. Para tentar controlar esses aspectos simbólicos, essa visão de que os Editoras, rEpórtErEs, assEssoras E freelancers: difErEnças EntrE as mulhErEs no jornalismo 64 Cadernos de Pesquisa v.47 n.163 p.44-68 jan./mar. 2017 jornalistas são "competentes por natureza" e que essencializa sua identidade, porque a representa como delicada, frágil, chorona, especialista somente nos assuntos para os quais tem uma "inclinação natural", por "ser mulher", a jornalista pode assumir uma neutralidade para não ser prejudicada na carreira. A neutralidade está inscrita em seu corpo. Seu profissionalismo pode ser facilmente notado: pela pontualidade, postura, tom de voz e cuidado com a escolha de roupas discretas, além da preocupação em mostrar sua capacidade profissional. Isabel, que, assim como Ingrid, é da geração intermediária, mas se diferencia de todas as outras entrevistadas por ter um filho pequeno, também percebe a diferença como experiência. Ao comentar sobre o perfil de profissional favorecido segundo os critérios de promoção na carreira, a jornalista afirma que, em sua área, a valorização profissional está ligada à dedicação integral à carreira, o que se torna inviável no seu caso, após o nascimento de seu filho: Ao serem perguntadas sobre como elas hierarquizariam os seguintes fatores a gerar mais ou menos problemas a serem enfrentados na carreira -o gênero e a criação de filhos -, todas responderam que a criação dos filhos é entendida como maior "geradora de problemas" da vida profissional da mulher, representando maiores dificuldades à sua ascensão profissional. Isabel vivenciou essa questão e interpretou que, para obter êxito na profissão, deveria "anular sua condição de mulher". Ela buscou apagar suas marcas que a diferenciavam dos homens e das outras mulheres sem filhos, enfatizando que trabalhou até os nove meses de gestação: Identificamos a diferença como relação social nos relatos em que o evento se referir à vivência de outra pessoa. As mulheres relatam experiências históricas coletivas, forjando uma identidade de grupo, buscando, assim, criar uma representação comum. Falam da vivência de discriminação das mulheres como grupo, com o qual se identificam e percebem características compartilhadas. Isabel relata o preconceito vivido por mulheres que são jornalistas e mães. Podemos identificar sua definição da diferença como relação social, já que, no seu depoimento, Isabel, recorrendo a uma memória comum, refere-se às vivências compartilhadas pelas mulheres de "outra época" e as "mulheres de hoje". Segundo sua concepção, no jornalismo, "não tem espaço para mulher que é mulher mesmo no trabalho": Para Isabel, "comportar-se como um homem no trabalho" implica, para as mulheres, ter uma chance de ter uma carreira bem-sucedida nessa profissão, o que pode gerar alguns benefícios. Nesse raciocínio, ao se comportar como um homem, apagando sua marca distintiva, a mulher torna-se uma "superfuncionária". Dependendo do tipo de mídia, pode haver uma dificuldade ainda maior para as mulheres com filhos pequenos, o que as direciona com mais frequência ao regime flexível de trabalho, e as faz preferir não se dedicar integralmente à profissão ou trabalhar em mídias que não exigem uma rotina de trabalho tão intensa quanto aquela dos jornais diários, dos programas de televisão diários e das revistas semanais. É muito comum que as mulheres mudem sua rotina de trabalho após a maternidade e, com isso, passem a se inserir em outro tipo de veículo de comunicação. Ou podem também buscar mudanças em suas relações de trabalho, com alterações no contrato de trabalho, exercendo suas atividades profissionais como freelancer, o que permite arranjos mais flexíveis. Por se tratar de uma profissão em que a rotina de trabalho é difícil de sustentar em longo prazo, e que é vista até mesmo como um "trabalho pouco amigável para as relações de família", a condição de freelancer é preferida por mulheres que se tornaram mães, no intuito de a profissional organizar sua rotina de trabalho. consiDerações Finais As mulheres são maioria entre os jornalistas que exercem suas atividades no setor formal da profissão em São Paulo, e também têm uma proporção de jornalistas diplomadas maior do que a dos homens. Entretanto, o amplo ingresso de mulheres, tanto nas universidades como no mercado de trabalho, não alterou significativamente as estratificações entre homens e mulheres no jornalismo. O fato de essa profissão ser hierarquizada a partir de valores específicos, que escapam da lógica da educação formal, pode representar prejuízos para as carreiras femininas. As mulheres podem ter controle sobre alguns aspectos objetivos da profissão, como ter um diploma de jornalismo, fazer uma pós-graduação, investir em cursos especializados. Porém elas têm de lidar com os aspectos simbólicos da profissão, sobre os quais é mais difícil ter controle. Assim como o que se observa em outras profissões que se feminizaram, no jornalismo, o aumento significativo do número de mulheres entre os profissionais não resultou em acesso correspondente a lugares de destaque. Mesmo em face do processo de feminização do jornalismo, que alterou em diversos aspectos a carreira, as desigualdades de gêne-ro persistem, uma vez que o segmento da carreira que está associado simbolicamente ao glamour da profissão, em que os profissionais são valorizados, respeitados, têm credibilidade, reconhecimento e prestígio profissional, é mais difícil de ser alcançado pelas mulheres. Observar a questão de gênero e suas conexões de poder na profissão do jornalismo implica examinar os mecanismos de estratificação que são estruturados pelo gênero e, com isso, entender como operam nessa profissão os "diferenciais de poder entre homens e mulheres" (SCOTT, 2005, p. 18). No entanto, as diferenças nessa profissão não se restringem a diferenciais de gênero. As mulheres também se distinguem entre si e nas formas de perceberem a diferença. Pensar sobre a diferença nos discursos das profissionais do jornalismo nos conduziu a buscar reconstruir as experiências que criaram os sujeitos, sua subjetividade e seus processos de identificação. O contraste geracional permitiu observar as diferenças entre as mulheres. Os significados percebidos pelas mais jovens referem-se a uma autoimagem positiva. As jornalistas mais jovens trazem uma linguagem mais técnica, empresarial e objetiva. E têm percepções idealizadas, diferentes da rotina de trabalho da profissão. Eram mulheres recém-formadas no curso de jornalismo e sem filhos. As jornalistas com mais tempo de experiência na carreira percebem a profissão sem esse "véu da idealização" das recém-formadas. São mulheres que têm cerca de 15 anos de carreira e uma visão mais crítica, em virtude do "choque de realidade" que experimentaram em sua trajetória, que as fez questionar suas representações e idealizações da profissão e o que de fato experimentam na carreira. Das jornalistas que estavam nessa fase da carreira, duas percebiam a diferença como experiência, como prática discriminatória: a jornalista que tinha se especializado em uma área considerada hard news, mais frequentemente ocupada por homens, e a jornalista que tinha um filho pequeno. A entrevistada com quase 50 anos de carreira não experimentava mais as tensões da realidade. Percebia a profissão como "encantadora" e contestava a diferença como relação social, a partir de um "apagamento de gênero", em que isolava a diferença como interiorização da subjetividade.